Contos

Nascimento de Netin

A cidade estava em polvorosa, devido a inauguração da fábrica de celulose implantada por Duque Madeira de Castro. Eram técnicos, engenheiros, especialistas e um sem-número de profissionais que chegavam na cidade para trabalhar na construção da fábrica em suas diversas fases de implantação. Sempre tinha periodicamente muita gente indo e muita gente vindo. E no meio de toda essa confusão e expectativas, Tamira Freire estava à espera do dia para dar à luz ao seu quinto filho. Era apenas a expectativa natural de mais um filho, pois não havia nada de especial, já que seria mais uma boca que se juntaria a outras quatro, para passar fome. Na realidade, isso a entristecia, visto que, Carlinhos Sustenido não dava a menor importância para o fato. Expectativa zero. Suporte zero. Fome e todas a amarguras que uma família poderia ter quando o responsável por sustentar não trabalhava, não ajudava e não levava o pão para casa. Muito pelo contrário, Carlinhos Sustenido tinha outra família e com essa, a penca de menino era até maior. Não fosse uma cesta de mantimentos misteriosa que religiosamente, todo final de mês aparecia na porta, e às vezes, dependendo do aperto vinha até com um envelope contendo algum dinheiro; até parecia que quem enviasse a cesta sabia dos aperreios maiores que Tamira tinha naquele mês.  Como dizia Bina Vulcão:

Duas coisas que Carlinhos Sustenido sabia fazer como ninguém — tocar violão e fazer menino para os outros criarem.

Tamira já havia abortado uma criança, antes dessa gravidez que sustenta agora. Como bem dizia a própria Tamira:

Botei bucho foi cedo… por causa daquele miserável que não respeitava meu resguardo nem a morte do menino.

Lembrava ela com dupla tristeza, de quem teve que abdicar de um filho e, que tentou de novo nessa gravidez, mas as gorobas de Esmeraldina da Garrafada não surtiram efeito dessa vez. Era a triste lembrança daquele que não veio pela sua vontade e, do que virá, não necessariamente que ela seja contra, mas pelo fato de que será mais um para passar dificuldades e quem sabe, até morrer de forme ou de outras mazelas que só a pobreza extrema poderia proporcionar. Achava ela até uma falta de respeito botar mais uma criança no mundo. Tamira olha ao longe, alisando a barriga no pé da goela, aqueles casarios disforme, ruas e ruelas fora de esquadro, o conjunto de árvores a fazer um bailado, com aquele sol ferrenho, imperdoável e causticante. Até poderia se achar beleza em todo aquele conjunto que formava um grande painel ondulante, mas ela via apenas falta de perspectiva e com todas as possibilidades de piorar ainda mais. Lembrava-se de que não havia nada para o almoço, nem uns míseros caroços de arroz, uma raiz, nada. Seu estômago roncava como um ensurdecedor despertador, lembrando que o bebê pedia comida. Algo parecia corroer-lhe por dentro, a gritar em dobro pela sua dor. A dor de não ter, somada a dor de não poder dar. A sua própria dor e dor de mais cinco. Era uma carga pesada, um sentimento de derrota que a fazia sentir ódio de tudo e quase todos, em especial, de Carlinhos Sustenido. Um vagabundo que só se importava em raparigar, tocar violão em noitadas e lamber o saco de Duque Madeira de Castro. Tamira Tomara sua decisão, após o nascimento daquela criança, iria dar para seus pais criarem e arribar no mundo em busca de coisa melhor e menos humilhante. Afinal:

Quem de uma escapa, cem anos vive — Rodrigo!

Gritou chamando o filho mais velho, que chegou correndo e esbaforido.

— Oi mãe, chamou?

Não, foi o papagaio. Claro que chamei Rodrigo. Pega as tralhas, vamos ver se conseguimos pescar alguma coisa na porra daquele rio, que aqui não tem nada para comer hoje.

— Hoje mãe? É todo dia!

Tamira tascou um cascudo na cabeça dele, que estalou.

— Respeita tua mãe, moleque safado!

Ele coçou a cabeça, mas, escondido. Era orgulhoso e tinhoso. Não queria dar o gostinho de sentir dor e de parecer fraco. Ao chegar na despensa das tralhas, bateu com a cabeça na parede, no lugar que estava doendo, como a que massagear, para aliviar a dor. Rodrigo não admitia fraqueza, nem para ele mesmo. Tinha o temperamento da mãe. Era duro, curto e grosso. Dificilmente alguma coisa o abalava. Ele se achava tão perigoso quanto a fome. Era tão teimoso que – “morreria de cu trancado sem ver a vó”, — como bem define o dito popular.

Enfim, saíram para a aventura da pesca, com a qual conseguiram pegar uns cascudos, mandis e até duas piranhas; fizeram três boas fieiras, o suficiente para aplacar a fome do dia e se garantir para o dia seguinte, se, devidamente juntado a um pouco de arroz que Tamira pediu na casa de mestre Pombo, na volta da pescaria. Ocorre, que o esforço pela atividade da pescaria a deixou muito cansada e com dores nas costas. Chegou a achar que já estava chegando a hora de parir. Pediu que Rodrigo fosse procurar seu pai, fosse onde fosse e avisasse a ele que a criança ia nascer. Que ela, a mulher dele, estava com dor de menino — vá, e vá ligeiro! — ressaltou Tamira, gritando:

Cassiel.

— Oi mãe.

— Chama tuas irmãs aqui ligeiro. Tô com dor de menino, tô quase parindo e esse peste parece que tá é me rasgando por dentro. Em seguida, vá até a casa da Amparo, a parteira da rua do pote e avisa pra ela, pedindo que venha me ver urgente. Ah, e se encontrar o vagabundo do teu pai, avisa também aquele imprestável.

Tamira já não aguentava mais ficar em pé com tantas dores. Prostou-se em sua rede e ficou aguardando alguém vir ajudá-la.  Enquanto isso, lembrou-se mais uma vez que seria mais um bacurauzinho para dar trabalho, sofrer e fazer sofrer. Como dar à luz a alguém que além de não ser bem-vindo, pela situação, deixe-se claro, e, que não tem qualquer perspectiva de sobrevivência? Essa terra aqui é tão miserável que até um aborto é difícil de fazer. Até as maldades e mazelas do mundo são selecionadas por tipo de pessoa. Como se uma fosse melhor que a outra. Como se Deus não os visse de forma igualitária. — E será que ver mesmo? — Se sim, porque tanta agrura, aperto, angústia e sofrimento? — achava que Deus havia esquecido de todos eles, ao ponto de negar-lhes até mesmo o pecado, por mais vil que fosse. Qual seria a intenção de Deus em manter um ser que não terá condições de igualdade para sobreviver nessa terra sem alma e nessa vida seca, sem eira nem beira, sem alento. As chances serão mínimas e as dores serão intensas e fartas. E o pior, é se lembrar que tudo isso é provocado e potencializado por um “pai” irresponsável, vagabundo e filho da puta.

Os pensamentos de Tamira sobre os desmantelos da vida são interrompidos por dois motivos, o primeiro, a chegada de Amparo, que começa a fazer uma série de perguntas sobre as dores e quando começou, enquanto apalpava a barriga da parturiente. O segundo, é a chegada da misteriosa cesta de gêneros alimentícios, que todo final de mês, chega religiosamente na casa de Tamira, e que muito tem ajudado a abrandar a forme daquela família. Até aquele momento, Tamira não conseguiu descobrir quem era a boa alma que dava aquela ajuda. Os filhos de Tamira ficaram acompanhando, curiosos, com medo e estranhando tudo aquilo, mas se distraíram com a chegada da cesta. Amparo em voz ativa diz:

Vosmecês vão simbora daqui. Isso não é coisa pra mininu ver. Janine, bota uma água pra felver e traz aqui.

Amparo puxa um papel do bolso e pede que Tamira leia em voz alta e firme, já que ela, Amparo,  não sabe ler. Tamira diz que a última coisa que ela quer fazer na vida agora, é ler. Amparo pede que Janine e Célia corram até a casa de duas rezadeiras e, de lá, elas chamem as outras para virem correndo à casa de Tamira, para que façam uma oração consagrada à nossa senhora do bom parto. Não demorou muito para que seis rezadeiras atendessem ao pedido de Amparo. Já chegaram todas devidamente paramentadas, inclusive com véus. Imediatamente começaram a oração para a hora do parto. 

Oração para a hora do parto

“Virgem Maria, confiante em vossa Infinita bondade,

recorro a Vós, que sendo Mãe de Deus acolheis,  

piedosa a minha prece. Protegeis todas as mulheres que           

no cumprimento da sua missão, concebam os corpos

que recebem as almas criadas por Deus para

 sua honra e glória…”

A oração é repetida por aproximadamente trinta minutos. Velas foram acesas e começou um disse me disse entre as rezadeiras. A pedido de Tamira, a oração encerrou e as rezadeiras foram dispensadas.

Tamira pergunta a Amparo, se existe oração para passar a dor e pede ajuda para que essa criança nasça de uma vez por todas.

— Tira esse diabo de dentro de  mim.

Tudo a seu tempo. Deus é que manda sair o bruguelo. Tenha calma Tamira.

Foi o que respondeu Amparo.

A noite chega e com ela a virada de junho para julho.  Embora não fosse o período, mas naquela noite começou a fechar o tempo. Raios, trovões. A casa chegava a se iluminar e os teréns da cozinha a sacolejar com a imponência dos trovões. Logo em seguida a chuva começou a cair com vontade e força. Pelos respingos que caiam dentro de casa, lembrando que a cobertura era de palha de babaçu, a sensação era que a chuva era muito mais forte ainda. Tamira pensou se isso poderia ser um sinal. Essa criança já foi tão indesejada, tão abandonada e esquecida sem sequer estar presente de fato, que talvez Deus queira dar um sinal, ou, anotar em sua caderneta, que ele de alguma forma deve ajudar esse moleque, dentro do seu tempo. Talvez seja a chuva da benção e do verdadeiro batizado desse abençoado, concluía Tamira em seus pensamentos.  E a chuva seguiu sem dar trégua pela noite adentro.

Nas primeiras horas do dia primeiro de julho, Tamira grita, esboça cansaço e uma certa raiva por tanta dor e por já estar praticamente molhada pelos respingos da chuva que não deu trégua a noite toda. Amparo desperta após tirar um cochilo. Apalpa a barriga de Tamira e acha que chegou a hora. Tamira, em tom de grito e com altivez, meio que ordena que a criança nasça de uma vez por todas. Obedeça, que eu sou sua mãe, deixa de moleza, que aqui fora tem um mundo louco te esperando e se esconder não vai resolver nada. Venha, vamos juntos encarar o mundão. Fome e miséria tem muita e já está garantido. Quanto a mudar tudo isso, pela força do seu choro, as oportunidades virão e elas serão pegas pelo chifre, sob o domínio e força das tuas mãos, que as direcionará para o teu melhor rumo. Vamos mudar o teu futuro agora. Venha! Gritava para a criança com a autoridade de mãe.

Por volta das cinco horas da manhã, o rebento deu o ar da sua graça. Estranhamente, com o choro do rebento, a chuva sessou abruptamente. De repente somente o choro do menino pairava pelo resto da cassa e se fazia escutar e, mesmo assim, parecia uma sensação de silêncio que trazia paz. Um silêncio que acomodava a todos na mesma frequência, parecia embalar em ventos suaves ou sopros de anjos.

Nasceu mais um cipoalguense. Amparo fez um confere e deu as devidas palmadas na bunda do bebê, despertando mais uma sessão de choro firme, zangado, autêntico, que trilhou por toda a casa e agora, chegando até a vizinhança. Era como se estivesse respondendo ao chamamento que sua mãe acabara de fazer. Os seus irmãos ficaram em estado de alerta. Não tinham muita noção do que aquilo significava. Se era bom ou ruim, para eles, era tudo indiferente. Mas, gostavam da movimentação da casa, as coisas ficavam mais animadas e a cada vizinho que chegava, trazia um agrado, uma comida, uma besteira que fosse e, aquilo era muito bom. E o melhor de tudo, sua mãe não estava em condições de ralhar, pelo menos não naquele dia. Faziam a festa entre eles. O fato, é que se tratava de um menino e era macho. Aleluia, já nasceu com fome, seja bem-vindo — constatou Tamira, antes de virar para o lado e apagar em um sono intenso.

Logo em seguida chega Carlinhos Sustenido, acompanhado de Verter Freire, cada um com uma garrafa de cachaça na mão e, ao saber que era menino, começa a gritar:

Mais um macho. Mais um pra arrochar o buriti nas negas dessa terra abençoada, meu caro Verter.

— Será que será veloz e talentoso com os dedos no violão, como vosmecê, Carlinhos?

— Meu amigo Verter, se os dedos não tiverem talento para as cordas do violão,

com certeza terão para dedilhar as raparigas desse mundão de meu Deus!

E caíram em uma gargalhada profunda, com Verter Freire interrompendo em uma constatação:

— Carlinhos, tu já atentou miseravi, que tu agora tem uma mão de fi com Tamira?

— É rapaz, dá uma mão mesmo!

Amparo pede ao Verter que examine a criança, pois, por ela, está tudo bem e que ela já vai para casa, considerando que também, com a Tamira está tudo dentro da normalidade. E logo em seguida saiu avisando que à noite voltaria para organizar uma oração de agradecimento à nossa Senhora do Bom Parto.

Com o furdunço gerado pelo pai da criança e pelo Verter, Tamira acorda e, ao escutar aquele chafurdo, chama Carlinhos e aplica-lhe um esculacho. Começando com irresponsável e terminando com vagabundo desalmado e covarde, que não serve nem para alimentar os próprios filhos. Pediu que ele fosse fazer barulho na casa das raparigas dele, porque ali tinha um recém-nascido que precisava de atenção, comida e sossego. Três coisas que ele não sabia ofertar a ninguém. Carlinhos saiu sem nada argumentar e ainda ouviu um grito que vinha lá do quarto de Tamira e que chegou aos seus ouvidos como um tapa:

Aproveita e enfia esse violão do cu, corno safado.

Doeu, mas Carlinhos Sustenido se fingiu de morto, como se o que foi dito não tivesse sido direcionado para ele. Preocupou-se em receber as pessoas que chegavam para visitar o rebento e agradecer os parabéns por mais um herdeiro. Célia, até então, a caçula, estava atônita, sem entender muito o motivo de tanta gente entrando e saindo daquele quarto, fazendo comentários que ela também não entendia nada:

Agora a Célia vai ficar encostada.

Disse uma vizinha, constatando a perda da condição de caçula para o rebento que acabara de chegar.

Mas Célia não se sentia assim. Queria mesmo era ver seu irmão, já que todo mundo estava entrando para vê-lo. Ela juntamente com seus irmãos mais velhos nada, até o momento. Ela pediu ao seu pai que a levasse até o quarto — no que foi prontamente atendida e, então, pode vir aquele bebê, seu irmão. De fato, tratava-se de um menino bonito. E na cabeça dela, era como se já o conhecesse há muito tempo. Já se permitiu criar um vínculo forte, que só estava começando. Muito ainda poderia acontecer. Célia saiu correndo para chamar seus irmãos para conhecer o bebê. Seu semblante era de pura alegria. Algo mudou a partir daquele momento. O mais novo da tropa. Mais um para brigar. Mais um para correr aquele mundão de meu Deus. Mais um para apanhar da mamãe — Constatou ela em sua correria em ritmo de felicidade plena. Logo em seguida entraram no quarto, Janine, Cassiel e Rodrigo. Este último, ao ver o irmão, disse no ouvido de Cassiel:

Parece um ratinho molhado.

— Um ratinho molhado e todo cagado, mas, é nosso irmão, não esqueçam disso!

Emendou Cassiel, com um grande sorriso e alisando a cabecinha do bebê.

— O bichin é zoiudo.

Entrou Janine, no festival de “boas-vindas” ao irmão.

Passado a pequena euforia da chegada do rebento, na realidade já havia decorrido dois meses a partir de primeiro de julho, sua mãe já havia negociado com os avós maternos, para que criassem o bebê, uma vez que a situação de miséria só havia piorado. Carlinhos Sustenido mais do que nunca só tinha tempo para rapariga, bebedeira e violão. Não se importava com nada. Era envolvido com mulher e cachaça. Por ele, seus filhos podiam morrer de fome, pois parecia que isso não era problema seu. Para acalmar o coração de Tamira, seus pais, Carvalho Rodrigues e Arcângela, prometeram buscar o neto no vindouro mês de setembro. Embora morassem em Cipó de Algas, sua propriedade era distante, pois já ficava nas proximidades da fronteira com Ipê dos Vaz, e Carvalho Rodrigues pouco saia de lá. Ele avisou que após pegar a criança, não teria mais volta, ou seja, não a devolveria mais, no que Tamira concordou plenamente, achando fazer todo sentido. O mais importante é que eles cuidassem da criança, para que ela focasse nos outros quatro filhos e agilizasse a saída daquela terra amaldiçoada e sem esperança. Mesmo assim, Carvalho Rodrigues reforçou com sua filha que pedisse para —o vagabundo do marido dela, que providenciasse um papel para que ele tivesse segurança na guarda do menino—, para que ninguém viesse reivindicar nada depois.

Setembro chegou e com ele os pais de Tamira. Como prometera Carvalho Rodrigues. Era setembro. As árvores de ipês faziam festa e se exibiam como a gritar para toda a mata, que não havia árvore mais bonita que elas. Na região de Cipó de Algas, a predominância era dos ipês amarelos e isso tornava o entorno mais exuberante ainda. Mas encravado entre tantas árvores amarelas com várias tonalidades, tínhamos também, os brancos, rosas claros e em tonalidades mais fortes, enfim, visto de longe ou de perto, eles comprovavam a exuberância em pleno estado de arte. Enfim, o entorno de Cipó de Algas parecia um grande mosaico com exibição das árvores mais bonitas da região e que comprovava que Deus gosta de se exibir, para nos dizer que nada é impossível. Não à toa, uma das cidades vizinhas denominava-se Ipê dos Vaz. Carvalho Rodrigues adentrou na casa de Tamira, renovado com a visão dos ipês, porém, mal a cumprimentou e foi logo falando sobre o papel que havia pedido. Ela respondeu que sim, mas que iria chamar Carlinhos Sustenido. Ele foi taxativo em dizer:

Não me chame aquele vagabundo aqui, a não ser que tu queira que eu meta a peia nele. Chame meus outros netos e me mostre o mais novo. Quero ver se tem cara de homem mesmo.

Disse isso enquanto desembalava dois jacás e dois sacos de sessenta quilos de alimentos em geral, inclusive uma suculenta carne seca. Tudo em abundância.

Aqui está alguns mantimentos, Arcângela vai guardar na cozinha. Não quero ver meus netos passando fome. Espero que não tenha esquecido, — Tamira —, que eu avisei para que tu não se cassasse com esse vagabundo do teu marido.

Tamira não baixou a cabeça.  Disse para seu pai que o que está feito está feito e não tem remédio.  Saiu batendo perna e soltando fogo pelas ventas. Mas, Carvalho a chamou em tom firme. Ela voltou. Ele disse em voz mansa. — Pode voltar, mas vá andando como gente e nada de sacolejo, que eu criei foi gente. Aproveitou e pediu um copo d´água. —. E assim ela fez, pois sabia que poderia entrar na peia.

Essa aí apanhou foi pouco.

Bradou Carvalho Rodrigues enquanto armava uma rede, pensando em voz alta:

— Eu vou é me abancar aqui. Tô cansado como diabo, cansado como quê! Tamira, me traz logo essa água e chama meus netos.

Dia seguinte, amanhecer ensolarado, calor infernal. Arcângela reúne a molecada e entrega para cada um, uma lembrancinha. Carrinhos, bonecas e outros agrados. Todos saem felizes e saltitantes. Tamira é chamada à parte por Arcângela e pede informação de Carlinhos Sustenido, que até o momento não deu as caras. Ela informa que também não sabe e que esses sumiços são comuns. Deve estar enrabichado na casa de alguma rapariga.

Tamira, tu quer voltar pra casa? Teu pai disse que aceita tua volta, de mala e cuia e os meninos, é claro.

Tamira chorou. Mas, agradeceu o convite e disse que iria tentar mudar a situação. Não seria fácil. Uma mulher separada com quatro filhos, mudar para uma cidade desconhecida, sem emprego e sem qualquer tipo de qualificação. Sequer um curso técnico. Nem costurar ela sabia. Havia estudado somente até o primário. Era meio que suicídio, mas precisava fazer, arriscar, tentar. Mesmo que precisasse espalhar a filharada pela família afora, deixando na casa dos parentes como já estava fazendo com o filho mais novo, mas precisava tentar. Mostrar a todos e principalmente a ela mesma, que algo de diferente poderia ser feito para sair daquela condição humilhante. Reconhecer que errou ao não ter dado ouvidos aos alertas de seu pai, quando a alertava que Carlinhos Sustenido não passava de um vagabundo. Naquele momento, o coração da Tamira encheu-se de coragem e motivação. Voltou até a sua forte personalidade e sua altivez. Morria ali, seu marido Carlinhos Sustenido, o qual passaria a chamar daqui para frente apenas de vagabundo ordinário.

Arcângela ficou transitando entre orgulho e tristeza. Sabia que o desafio seria enorme, mas gostava de ver o jeito altivo e aguerrido da filha. — Orgulho também faz bem ao espírito — lembrou o que dizia Carvalho rodrigues.

— Certamente essa saiu ao pai. Tal e qual.

Após aquele momento forte e de emoções à flor da pele, Arcângela informa a Tamira que no próximo dia seguirá viagem e pede que arrume as coisas da criança para que sigam sem problemas.

Que coisas mamãe, ele não tem nada. Só não morreu de fome e está vestido porque a senhora trouxe umas roupinhas e muita comida.

Pois arrume essas roupinhas. Avise aos meninos para estarem todos de pé às cinco da manhã, pra que se despeçam de seu irmão. Eu já vou deixar preparado um dicumê pra ele. Já fiz um frito pra mim e Rodrigues. E, o mais importante, não quero choro e, tu, vai ficar no mínimo os próximos dez anos sem botar olho no menino. Após esse tempo, se quiser, pode ir buscar que ele estará forte e bonito como tu.

E assim foi aquela primavera em Cipó de Algas, com grandes decisões, encontros e desencontros, desmantelos, partidas, sonhos desconectados, desilusões e desencantos. A realidade nua e crua, daquelas que corta a carne e amarga o coração, botando gosto de desgosto. Agora, para Tamira, não havia mais passado. Só a incerteza do futuro a perturbar o seu juízo e a encorajar seu presente, moldando-o para novos passos.

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