Contos

Me dá dez — Fablison!

Fablison tinha apenas seis anos de idade; mas tinha tamanho de menino de quatro anos; parecia uma diferença irrelevante, mas não era. Era apenas uma criança, de dois, de quatro ou seis anos. Ele tinha os lábios finos, quase um risco e cabelos de manga chupada, o que o tornava ainda mais novo do que os seus parcos seis anos e claro, muito mais feio e estigmatizado pelas circunstâncias da vida; vida que não teve compaixão com a pequena criança; mas, que já tinha fluência nas putarias da vida  e principalmente, das suas grandes dificuldades, injustiças, emoções, necessidades e falta de presença dos pais. Era muito conhecido no bairro do Monte Castelo, principalmente no chamado miolo do Monte Castelo, que significava, o que existia de pior, em todos os sentidos. Moleques que em tenra idade já faziam papel de aviãozinho para os traficantes de meia tigela e covardes; faziam mandados por qualquer tostão; e sofriam as consequências de suas próprias mazelas. No caso de Fablison, que aprendera desde cedo (não esqueçamos que ele tinha apenas seis anos) a valorizar seu trabalho e esforço, fosse ele o que fosse. Quando Minoara, mulher de Marcinho, moradores da esquina da rua Zito Batista; e que ficava em frente a praça, local em que de tudo acontecia, pedia para Fablison fazer alguma coisa ou algum mandado; Fablison, sempre se prontificava a cumprir o pedido, mas sempre dizia:

— A senhora me dá dez?

Ele usava essa frase fazendo alusão a dez centavos de cruzeiros, que ele achava por bem, economizar algumas palavras, certo de que todos iriam entendê-lo.

O problema é que ele a repetia muito; já que com ou sem alguém pedindo que ele fizesse alguma coisa, ele dizia a tal frase do “me dá dez”.

Mas existia uma única pessoa a quem ele não dizia a frase, me dá dez. Era a filha de Marcinho, de nome Jessiane. Ele não só não pedia os dez centavos, como sempre comprava na quitanda da praça, o bombom preferido dela. Ele era fascinado pela Jessiane. Era como se irmãos fossem. Empatia mútua e de graça.

Claro que a turma do bairro, puxado pela turma que frequentava a praça e mais especificamente aqueles que usavam a quadra de esportes, o apelidaram de — me dá dez.

Certo dia, Me dá Dez apareceu na casa de Minoara, com um balde cheio de filhotes de gatos recém-nascidos; eram oito; e os ofereceu a Marcinho,  que o tratou mal e que por um mix de vingança e inocência, quase beirando a falta de bom senso, Me dá Dez deixara os oito filhotes de gato dentro do terraço da casa de Minoara e Marcinho, o que provocou um desconforto geral, no tocante a odor e muitos miaus. Marcinho então foi até a casa de Me dá Dez e disse-lhe que uma pessoa o estava procurando e que queria comprar todos os gatos. Me dá Dez, em sua santa inocência acreditou e, como um gato, correu até a casa de Marcinho e recolheu os oito filhotes; recolocando-os  no balde e foi esperar o tal pretendente na praça, conforme havia orientado Marcinho. Após mais de três horas de espera, sob sol intenso e um puxão de orelha que Minoara dera em Marcinho por fazer o menino de bobo, Me dá Dez foi até a porta de Marcinho e bradou:

— Porra Marcinho, pelado filho da puta; cadê o comprador? —  Explique-se que pelado, era um dos muitos apelidos de Marcinho.

Marcinho explicou que ele devia ter tido algum problema e que era melhor ele continuar esperando lá na praça. Mas Me dá Dez não acreditou em Marcinho e esperou ele se afastar e voltou a jogar os gatos no terraço. Mas, antes de fazer isso, chamou Marcinho de novo, que ao se voltar para o portão, se deparara com Me dá Dez com a pirrolinha de fora, empunhada com a mão direita, e gritando para Marcinho:

— Olha aqui Marcinho pelado; pro priquito da tua mãe filho da puta. Aproveita e me dá dez!

Marcinho sorriu e não deu mais atenção a Me dá Dez.

No dia seguinte, um domingão; Marcinho pelado recebeu em sua casa seu sobrinho, dois anos mais novo que Me dá Dez. Ele queria se vingar do moleque, pelo desaforo que dissera no dia anterior; e informou ao seu sobrinho que Me dá Dez ficava muito brabo quando o chamavam de passa a marcha. O sobrinho em- bora no início, tenha ficado meio receoso, pois sabia que Me dá Dez era um moleque criado na rua e poderia ser muito agressivo, mas resolveu arriscar. Me dá Dez estava sentado com sua turma em uma escadaria e tinha acabado de entregar bombons para Jessiane; e o sobrinho de Marcinho pelado ao se aproximar da escadaria gritou. — Passa a marcha Me dá Dez. — e bateu em retirada. — Momento em que Me dá Dez sai em disparada em direção ao sobrinho de Marcinho berrando:

— Vem cá filho da puta. Vem cá se tu é homem caralho. Aproveita e manda o teu tio pelado tomar no cu. — Nesse mesmo momento a turma da escada gritava murmurando palavras de incentivo e sacanagens com Me dá Dez.

De repente o sobrinho de Marcinho sobe na motoca pilotada pela Jessiane e os dois saem sorrindo e em disparada. Aquilo foi como uma facada no peito de Me dá Dez. Sua irmã de coração aprontara para cima dele. Em sua mente ele via apenas o sorriso de Jessiane. Conhecera pela primeira vez a sua primeira grande frustação, embora ele não soubesse bem que tipo de sentimento se passava em sua mente. Era muito novo para saber o que sentia, mas o que importava era que aquilo cortava-lhe o peito. Mas Me dá Dez era muito novo e inocente para sentir rancor, raiva ou julgar alguém puro como ele percebia Jessiane; e no dia seguinte ele estava lá oferecendo seus préstimos pelos famigerados dez centavos de cruzeiros, menos para Jessiane, a quem ele não cobrava nada e ainda a presenteava com bombons do seu agrado.

A vida correu e, com ela, decorreram-se nove anos. Era um domingo com cara de domingo; daqueles dias sem pretensão, sem desejos e ensejos; um dia morno, parco, pardo; quase sem graça. Me dá Dez estava em um barzinho em um canto qualquer do bairro Monte Castelo. Ele já fizera pela madrugada, o seu papel de aviãozinho dos chefes locais do tráfego. Já havia passado na casa de Jessiane e levado para ela, seus bombons preferidos, agora com a inclusão de chocolates. Embora ele já não fosse tão puro, pois nesse mesmo domingo ele havia socorrido Jessiane, que ao voltar da feira com a sua mãe, estava sendo abordada agressivamente por um grupo de três moleques de aproximadamente dezesseis a dezessete anos; e a quem Me dá Dez, ao observar tamanho absurdo, correra em socorro a Jessiane, que aproveitando o embalo da carreira, deu pernadas a três por quarto e voadoras nos peitos dos três meliantes, que os fizeram bater em retirada, sem nada levar da mãe e da filha. Mesmo assim, Me dá Dez saca de uma arma e mira em direção aos três fujões covardes; mas ele para ao ouvir um grito de Jessiane, em tom altivo:

— Fablison, não faça isso! — Ele prontamente olha para ela, baixa os olhos e guarda a arma, batendo em retirada.

Dever cumprido, sentimento de orgulho e bem-estar por defender sua amiga e irmã de alma e, de lambuja, a dona Minoara, de quem ele tanto recebera atenção, carinho e dez centavos. Naquele domingo ele estava saboreando uma cervejinha gelada, para amenizar o calor excessivo da região e, claro, molhando e alegrando a palavra, como sempre costumava a fazer. Naquele dia, por tudo que aconteceu, ele estava especialmente alegre; o vento lhe lambia o rosto; e apesar daquele calor, a sensação era muito boa.

Me dá Dez estava sentado de frente para a rua. Veio em sua mente, o filho da puta do Marcinho pelado e claro, da sua filha, Jessiane. Lembrara também dos seus pais, de quem nunca teve apoio, nem uma palavra de incentivo. Achava que Minoara tinha muito mais consideração por ele, do que sua mãe e seu pai. O carro era preto e parou em frente ao bar; no seu interior, três elementos que não fizeram questão de se esconder e que aparentavam ter de dezesseis a dezessete anos. Do veículo saíram dois dos moleques que empunhavam três oitão e o descarregaram no peito de Me dá Dez.

Naquele resto de dia não houve mais alegria; não haveria mais aviãozinho; não haveria mais meliância nem discordância; não haveria mais compra de bombons para Jessiane; não haveria mais fome nem riscos; ninguém zombaria mais da sua condição miserável; não haveria também xingamentos de seus pais, chamando-o de vagabundo. Havia sim, uma multidão no seu entorno e muitas frases soltas:

— Sabia que acabar nisso!

— Sempre foi um marginal, desde menino!

— Ele está com carinha de anjo.

A vida de Fablison, o Me dá Dez, perecera em um final de  manhã de domingo, como a provar que a vida, sob uma determinada ótica, em um bairro largado por todos e desprovido de tudo, valia menos que dez centavos.

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